terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Edição 2151 / 10 de fevereiro de 2010

VEJA.com
Especial

Dilúvio... 45ºdia

Almeida Rocha/Folha Imagem
DEPOIS DA CHUVA, O CAOS
O rastro de destruição na Vila Guarani, na Zona Leste de São Paulo, onde a enxurrada matou duas pessoas:
a ocupação irregular das margens de córregos e rios agrava o problema das enchentes.
Há um mês e meio, os 11 milhões de habitantes de São Paulo vivem um drama que parece não ter fim – nem solução. Diariamente, a cidade é castigada por temporais intensos, que duram em torno de duas horas e instauram o caos. A chuva causa congestionamentos monstruosos no trânsito, deixa bairros inteiros alagados e sem eletricidade, derruba casas e árvores e, até a sexta-feira passada, havia provocado a morte de 14 pessoas, carregadas pela enxurrada, vítimas de desabamentos ou queda de árvores. Em janeiro, o volume de água que se abateu sobre São Paulo foi de 480,5 milímetros. Isso representa o dobro da média histórica de janeiro e o maior volume registrado desde 1947 nesse mesmo mês. São Paulo é o epicentro das chuvas torrenciais que atingiram também outras áreas do Sul e do Sudeste do país. São Luiz do Paraitinga, cidade paulista no alto da Serra do Mar, foi devastada por uma enchente que destruiu dezenas de construções do século XVII tombadas pelo patrimônio histórico. Também no interior paulista, Campinas, Sorocaba, São José do Rio Preto e Atibaia sofreram com os temporais. Em Angra dos Reis, no estado do Rio, deslizamentos de terra causados pela chuva no Ano-Novo soterraram casas e mataram 53 pessoas. Deu-se o recorde de extensão de deslizamentos em encostas de mata preservada na história da cidade.

No Rio Grande do Sul, cidades com volume de chuva médio de 100 milímetros no mês de janeiro, como Santa Maria, Santiago e São Luiz Gonzaga, foram castigadas com índices de 400 milímetros. A lavoura de arroz gaúcha sofreu perda de 1 milhão de toneladas de grãos, o suficiente para suprir a demanda do Brasil inteiro por um mês. Em Minas Gerais, nada menos que 52 cidades decretaram situação de emergência por causa da chuva. Em nenhuma cidade, contudo, os efeitos da chuvarada foram sentidos de forma tão constante quanto em São Paulo, a maior cidade do Hemisfério Sul e polo econômico que produz 12% do PIB do Brasil.

O brasileiro que vive no Sul ou no Sudeste está habituado às previsíveis chuvas de verão. Mas não a essa cortina de água que se repete dia após dia como se fosse uma reedição do dilúvio bíblico (que, por sinal, se prolongou por quarenta dias, tempo já ultrapassado pelo dilúvio paulistano). A pergunta que todos se fazem é por que chove tanto em um único lugar. A resposta mais curta é que existe uma conjunção excepcional de fatores meteorológicos, cada um deles contribuindo para a continuidade do aguaceiro. Já a devastação que as águas provocam, por meio de alagamentos e enxurradas, é também consequência do perfil geográfico da cidade e das características da urbanização conduzida através dos anos. No que diz respeito à meteorologia, a chuva resultou de três fenômenos. O primeiro é o fluxo de ar úmido que todo ano segue da região amazônica em direção ao Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil. Esse fluxo é intensificado pela evaporação das águas do Oceano Pacífico na região equatorial e do Oceano Atlântico no Caribe. Pois bem. Neste verão, o efeito El Niño aqueceu as águas do Pacífico equatorial em 2 graus. As águas do Caribe, por sua vez, também estão 1 grau mais quentes. A maior temperatura aumentou ainda mais a intensidade da umidade vinda do Norte, tornando-a mais propensa a provocar chuvas fortes.

O segundo fator que concorreu para a formação de temporais em São Paulo e no Sudeste foi o aquecimento do Atlântico – em 1,5 grau – na sua porção próxima à costa do Sudeste brasileiro. Isso faz com que a brisa marinha que chega ao planalto paulista, onde se localiza a capital, favoreça a ocorrência de fortes pancadas de chuva, principalmente no fim da tarde. O terceiro fator é o calor na cidade de São Paulo em janeiro. As temperaturas foram mais altas que a média do mês de janeiro nas últimas seis décadas. O calor favorece o aquecimento do solo, que por sua vez esquenta o ar. Este fica mais leve e sobe, formando nuvens carregadas. É um ciclo infernal de retroalimentação.

As chuvas fortes não causariam tantos problemas em São Paulo caso a cidade tivesse sido preparada para elas. Na virada do século XIX para o XX, impulsionada pela riqueza produzida pelo café e pelas indústrias, São Paulo deixou de ser uma vila provinciana para assumir sua vocação de metrópole. A partir daí, seus governantes optaram por canalizar boa parte de seus córregos e rios, transformando-os em galerias pluviais no subsolo da cidade. Sobre essas galerias foram construídas grandes avenidas, como 9 de Julho, 23 de Maio, Juscelino Kubitschek e Pacaembu. As galerias subterrâneas coletam a água da chuva dos bueiros e a levam para galerias maiores, que a despejam no Rio Tietê. Nesse processo, as enchentes ocorrem de duas formas. A primeira é quando o volume de água é maior do que aquele que as galerias comportam. Nesse caso, a água volta à superfície e causa alagamentos. A segunda é quando os próprios rios não comportam o volume de água despejado em seus leitos, e transbordam.

Para retardar a chegada da água aos rios há os chamados piscinões, grandes reservatórios subterrâneos que hospedam temporariamente as enxurradas. A quantidade de piscinões em São Paulo, porém, é insuficiente. O lixo jogado nas ruas também colabora para as enchentes, mas, segundo especialistas, é um fator secundário. "O problema real é o volume de chuvas em tantos dias consecutivos, que satura o solo e as galerias", diz o engenheiro Aluisio Canholi, coordenador técnico do Plano de Macrodrenagem da Bacia do Alto Tietê e especialista em drenagem urbana. A ocupação urbana das várzeas de rios, por sua vez, produz enchentes crônicas. Quando o volume do rio sobe, devido às chuvas, ele alaga as várzeas naturalmente. Se essa área estiver ocupada, as casas vão sempre se alagar. É o caso do Jardim Pantanal, na Zona Leste de São Paulo, construído às margens do Rio Tietê, que está há dois meses sob as águas. Para o bairro voltar ao normal é preciso que o nível do rio abaixe. Como diz a Carta ao Leitor desta edição de VEJA, tragédias como a do Jardim Pantanal despertam revoltas legítimas na população e fatalmente são exploradas politicamente. O prestígio popular do presidente americano George W. Bush entrou em queda livre devido ao modo desastroso com que ele lidou com a destruição de Nova Orleans pelo furacão Katrina. Veja na página 72 como o PT pretende usar as enchentes de São Paulo como peça de propaganda política contra o governador José Serra, provavelmente o candidato da oposição à Presidência da República.

Fotos Jim Watson/AFP e Evelson de Freitas/AE
DESASTRE POLÍTICO
Em 2005, George W. Bush revelou-se um presidente de reação lenta diante do furacão Katrina
(à esq). José Serra, governador de São Paulo, vistoria uma cratera aberta pela chuva
na Rodovia Castelo Branco


Não há cidade que passe incólume por chuvas da intensidade das que desabaram sobre São Paulo neste início de ano. O que os governos podem fazer – e muitas vezes deixaram de fazer – é encontrar meios de minimizar os danos, evitar alagamentos prolongados e garantir que a tormenta atrapalhe o mínimo a vida de seus habitantes. Os especialistas calculam que um único dia de chuvas torrenciais em São Paulo, com alagamentos, cause um prejuízo de 95 milhões de reais só com engarrafamentos no trânsito. O engenheiro Aluisio Canholi afirma que 80% do total de perdas econômicas decorre dos congestionamentos de trânsito. Motoristas, mercadorias e bens ficam parados no trânsito, ilhados em pontos de alagamento. Nos outros 20% da conta entram fatores como perdas materiais e desvalorização dos imóveis situados em áreas sujeitas a inundações. As ações necessárias para amenizar as enchentes em São Paulo são conhecidas. O secretário municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, Miguel Luiz Bucalem, resume o que é preciso fazer:

construir mais piscinões. Na Bacia do Alto Tietê, onde fica a cidade de São Paulo e outros 35 municípios, há 45 piscinões. Número insuficiente.

aumentar a permeabilidade da cidade ampliando suas áreas verdes. A terra dos parques ao longo de córregos e rios absorve a água caso o rio transborde.

reforçar as galerias que transportam a água da chuva. Em regiões antigas da cidade, elas são muito estreitas porque foram construídas quando a cidade era menos urbanizada e havia mais solo para absorver a água.

transferir para locais seguros os moradores que vivem em áreas de risco, como o Jardim Pantanal.

coletar o lixo na hora certa, para que ele não se espalhe pelas ruas com a chuva.

usar mais pisos com capacidade de drenagem. Estacionamentos e calçadas podem ser construídos com pisos que deixem a água da chuva ir para o lençol freático, e não para os bueiros.

Em 1947, quando ocorreu o recorde pluviométrico num mês de janeiro em São Paulo, a cidade tinha 2,2 milhões de habitantes e a chuva provocou problemas similares aos atuais, embora em escala menor. O principal fator pelo qual os relatos de tragédias em 1947 são menores que os registrados hoje é a forma de ocupação da cidade. Com ruas de terra, várzeas e lagoas pluviais às margens do Tietê, a água da chuva era mais facilmente escoada e drenada. Poucas horas depois da chuva, portanto, a cidade voltava ao normal. "Embora a chuva causasse danos, ela não criava pânico na população, como acontece hoje", diz o geógrafo Adler Guilherme Viadana, da Universidade Estadual Paulista. Hoje, ao contrário, é compreensível que os paulistanos encurralados pela água olhem em pânico para as nuvens de chuva no céu.

Com reportagem de Alexandre Salvador, Carolina Romanini, Laura Ming, Maria Paola de Salvo e Paula Neiva

Fotos Arquivo Agencia Estado
1950
A HISTÓRIA SE REPETE
Alagamento na Rua 25 de Março,
no centro da cidade,...



1960
...no bairro do Cambuci, na Zona Sul,...


1970
...e na Marginal do Rio Tietê